13/12/2012

Millôr Fernandes

Hoje a indicação é por minha conta.
Dois pequenos textos dessa grande figura nacional.

Cientificismo

Uma certa poesia em meu caráter vem de belas e ingênuas histórias lidas na infância. Essas histórias foram escritas por homens que as imaginavam com pureza de intenções e uma total ausência de métodos dirigidos. Vejo, com tristeza, uma enorme tendência atual para se escrever histórias orientadas, que visem dar à criança, não apenas a magia dos acontecimentos narrados, mas também, hábil ou grosseiramente disfarçados no meio disso, conhecimentos úteis, noções culturais, dados científicos, em suma - educação!
Isso não existe, sobretudo dentro dos currículos escolares escolares, e nada do que aprendemos nos livros didáticos nos serviu na vida. Não nos ajudou a compreendê-la melhor, a amá-la mais, a senti-la mais profundamente. Professores sem lirismo, em cursos sem fé, secam as fontes da criação dos alunos, amarguram-nos com noções inúteis, criam-lhes tabus para sempre indestrutíveis, inoculam-lhes o horror à cultura e, sobretudo, matam-lhes esse que é o maior dom do ser humano - seu senso lúdico. Agora - e de alguns anos - sinto essa ameaça comercial-didática às histórias infantis. Menos e menos puras elas vão ficando cada dia. Mas vá lá, sou (por isso mesmo) um homem que também perdeu muito de seu encantado primitivismo e que aceita os tempos. Assim, não podendo reagir, quer ser dos primeiros a adotar essa tendência de que falo e a usá-la totalmente. Contemos, pois, no estilo aludido, a história de - qual história seria melhor? - bem, a história de

Chapeuzinho Vermelho


Era uma vez (admitindo-se aqui o tempo como uma realidade palpável, estranho, portanto, à fantasia da história) uma menina, linda e um pouco tola, que se chamava Chapeuzinho Vermelho. (Esses nomes que se usam em substituição do nome próprio chamam-se alcunha ou vulgo). Chapeuzinho Vermelho costumava passear no bosque, colhendo Sinantias, monstruosidade botânica que consiste na soldadura anômala de duas flores vizinhas pelos invólucros ou pelos pecíolos, Mucambés ou Muçambas, planta medicinal da família das Caparidáceas, e brincando aqui e ali com uma Jurueba, da família dos Psitacídeos, que vivem em regiões justafluviais, ou seja, à margem dos rios. Chapeuzinho Vermelho andava, pois, na Floresta, quando lhe aparece um lobo, animal selvagem carnívoro do gênero cão e... (Um parêntesis para os nossos pequenos leitores — o lobo era, presumivelmente, uma figura inexistente criada pelo cérebro superexcitado de Chapeuzinho Vermelho. Tendo que andar na floresta sozinha, - natural seria que, volta e meia, sentindo-se indefesa, tivesse alucinações semelhantes.).

Chapeuzinho Vermelho foi detida pelo lobo que lhe disse: (Outro parêntesis; os animais jamais falaram. Fica explicado aqui que isso é um recurso de fantasia do autor e que o Lobo encarna os sentimentos cruéis do Homem. Esse princípio animista é ascentralíssimo e está em todo o folclore universal.) Disse o Lobo: "Onde vais, linda menina?" Respondeu Chapeuzinho Vermelho: "Vou levar estes doces à minha avozinha que está doente. Atravessarei dunas, montes, cabos, istmos e outros acidentes geográficos e deverei chegar lá às treze e trinta e cinco, ou seja, a uma hora e trinta e cinco minutos da tarde".

Ouvindo isso o Lobo saiu correndo, estimulado por desejos reprimidos (Freud: "Psychopathology Of Everiday Life", The Modern Library Inc. N.Y.). Chegando na casa da avozinha ele engoliu-a de uma vez — o que, segundo o conceito materialista de Marx indica uma intenção crítica do autor, estando oculta aí a idéia do capitalismo devorando o proletariado — e ficou esperando, deitado na cama, fantasiado com a roupa da avó.

Passaram-se quinze minutos (diagrama explicando o funcionamento do relógio e seu processo evolutivo através da História). Chapeuzinho Vermelho chegou e não percebeu que o lobo não era sua avó, porque sofria de astigmatismo convergente, que é uma perturbação visual oriunda da curvatura da córnea. Nem percebeu que a voz não era a da avó, porque sofria de Otite, inflamação do ouvido, nem reconheceu nas suas palavras, palavras cheias de má-fé masculina, porque afinal, eis o que ela era mesmo: esquizofrênica, débil mental e paranóica pequenas, doenças que dão no cérebro, parte-súpero-anterior do encéfalo. (A tentativa muito comum da mulher ignorar a transformação do Homem é profusamente estudada por Kinsey em "Sexual Behavior in the Human Female". W. B. Saunders Company, Publishers.)

Mas, para salvação de Chapeuzinho Vermelho, apareceram os lenhadores, mataram cuidadosamente o Lobo, depois de verificar a localização da avó através da Roentgenfotografia. E Chapeuzinho Vermelho viveu tranqüila 57 anos, que é a média da vida humana segundo Maltus, Thomas Robert, economista inglês nascido em 1766, em Rookew, pequena propriedade de seu pai, que foi grande amigo de Rousseau.

 
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